quarta-feira, março 09, 2016

Desejo mimético e projeção em Madame Bovary e O vermelho e o negro


mas em Paris o amor é filho dos romances. O jovem preceptor e sua tímida patroa teriam encontrado em três ou quatro romances, e até nas coplas do liceu, o esclarecimento da posição deles. Os romances ter-lhes-iam traçado o papel a desempenhar, mostrado o modelo a imitar; e este modelo, cedo ou tarde, e embora sem nenhum prazer, quem sabe até resmungando, a vaidade teria forçado Julien a segui-lo. (Stendhal)

A ideologia romântica, com suas aspirações de originalidade, preconizava a produção do pitoresco e do diverso em detrimento da imitação. Num momento em que se consolidavam  noções de propriedade privada e consumismo, o novo não só detinha maior apelo atrativo, como também estimulava a sensibilidade tornando-a ainda mais sedenta. Colin Campbel afirma, em “A ética romântica”, que, neste processo, a produção dos romances se voltava para uma atividade profundamente imaginativa, explorando uma atmosfera mais emocional, ou repleta de lugares sombrios e exóticos, muitas vezes com certa aproximação do sobrenatural, com vistas a “embriagar” a mente dos leitores.

O público consumidor de ficção carecia da “aquisição contínua de ‘novos produtos’” (CAMPBEL:2001,247), pois sua sensibilidade estava cada vez mais ávida por novidades. Conforme Campbel ressalta, o consumo gradativo de “novidades” gerava um prazer autoilusivo para o leitor, que o tornava mais e mais insatisfeito com a própria existência, “levando as jovens senhoras (...) a esperarem que a vida fosse como num romance sentimental” (Idem). Ademais, a satisfação autoilusiva operava gerando não só o descontentamento com o mundo, mas também um “anseio generalizado de realização  dos sonhos” (Idem:248).

As obras de ficção mais sentimentais, em especial, exerciam considerável influência sobre seus leitores, que mergulhados nos anseios íntimos das personagens, passavam a se identificar com elas. Segundo Ian Watt, no texto “A experiência privada e o romance”, “toda a literatura evidentemente se deve a essa capacidade humana de projetar-se em outras pessoas e em suas situações” (WATT: 1990,175). No mesmo texto, o autor também comenta que

Projetando-se na heroína as leitoras de Pamela conseguiam transformar a impessoalidade e o tédio do mundo real num modelo gratificante em que cada elemento se convertia em algo que proporcionava emoção, admiração e amor (Idem: 177).

Tal projeção acabava por gerar uma atividade imitativa que, anos mais tarde, ficaria conhecida como bovarysmo, e que Edgar Morin, em “Integração cultural”, define como  “a identificação entre o romanesco e o real” (MORIN: 1997, 58), isto é, o desejo do indivíduo de viver experiências semelhantes às de um personagem de romance. Nesse mesmo ensaio, Morin explica:

Pela primeira vez, tão radicalmente desde Don Quixote, mas dessa vez no plano feminino e burguês, o processo de identificação que une o leitor (a leitora) ao herói (a heroína) do romance é impulsionado até a permutação: a burguesa sonhadora se torna a heroína do romance, enquanto a heroína do romance se tornou a sonhadora leitora burguesa. Madame Bovary é o Don Quixote do romance burguês. Don Quixote e Emma Bovary se matam a querer idealizar o mundo e se tornam as testemunhas nas quais se identificam um com o outro, o que René Girard chama de mentira romântica e verdade romanesca: eles vivem essa vida híbrida, semi-onírica, semi-real, onde se dá o diálogo entre o romance moderno e seu leitor. (Ibidem)

Em seu primeiro livro, Mentira romântica e verdade romanesca, René Girard comenta que, embora espontâneo, o desejo muitas vezes não é essencial. Para Girard, há um mediador que influencia tanto o sujeito quanto a escolha do objeto. Apropriando-se da metáfora do triângulo, o autor explica que o sujeito desejante toma um outro por modelo, e este outro é escolhido por sua posição de prestígio em algum âmbito caro àquele. A partir dos desejos desse outro admirado (ainda que o admirador o negue), é que os desejos do indivíduo irão se definir. Num momento histórico em que se consolidavam ideologias democráticas e de igualdade social, em que o consumo prometia a possibilidade de o indivíduo se tornar aquilo que desejasse, o romance anuncia a mentira romântica: não há espontaneidade nas ações dos indivíduos, mas sim a imitação.

Para explicar o bovarysmo, Girard cita Jules de Gaultier, demonstrando que a falta de consistência nas reações individuais, deixa os indivíduos sujeitos aos estímulos do meio:

Uma mesma ignorância, uma mesma inconsistência, uma mesma falta de reação individual parecem destiná-los a obedecer à sugestão do meio externo, na falta de uma autossugestão vinda de dentro.(GAULTIER apud GIRARD: 1961, 18)

Em Madame Bovary, de Gustave Flaubert - essa falta de motivação subjetiva do desejo se dá quando ela passa a desejar através das heroínas românticas dos livros que lê. “As obras medíocres que ela consumiu durante a adolescência destruíram sua espontaneidade”, afirma Girard (1961, 18). Citado por este último, Gaultier explica que, para alcançar seus objetivos — que é ser outros que não eles mesmos — os heróis de Flaubert se inspiram num modelo, imitam ao máximo um personagem: seu exterior, a aparência, o gesto, a entonação, o hábito. Para Emma, os mediadores são as narrativas dos viajantes, os livros e a imprensa, assim como as últimas modas da capital:

Antes do casamento, havia pensado que sentia amor; contudo, como a felicidade resultante desse amor não surgia, com certeza tinha se enganado, pensava ela. E buscava saber qual era, afinal, o significado correto, nesta vida, das palavras 'felicidade', 'paixão' e 'arrebatamento', que nos livros pareciam tão bonitas. (FLAUBERT:2002,45)

Assinou a Corbeille, jornal de senhoras, e a Sílfide dos Salões. Devorava, sem perder uma palavra, todas as notícias das primeiras representações, das corridas e das sessões de gala, interessando-se pela estréia de uma cantora e pela abertura de uma casa de modas. Estava a par do último figurino, sabia o endereço dos melhores costureiros e quais os dias de passeio ou de ópera. (...) leu Balzac e George Sand, procurando satisfações imaginárias para os seus apetites pessoais. Até para a mesa levava o livro, do qual ia virando as folhas, enquanto Carlos comia e conversava. (...) Entre o marido e as personagens inventadas, punha-se a estabelecer confrontos. (Idem:72)

Sobre a mediação do desejo, Girard tece, ainda, uma distinção, identificando dois tipos: a mediação externa e a mediação interna. Na primeira, a distância entre o indivíduo e o mediador é grande o suficiente para impedir que eles travem contato e concorram pelo mesmo objeto desejado. Aqui, o mediador normalmente é visto como um ídolo, um ideal a ser seguido. É o caso de Emma Bovary, que buscará imitar os modelos heróicos e romanescos, numa tentativa de colorir uma existência insípida. É também o caso do personagem Julien – do romance O vermelho e o negro, de Stendhal - em relação a Napoleão, em quem o jovem protagonista encontra  o molde exemplar de heroísmo e bravura; e de Mathilde, personagem do mesmo romance, que se inspira na história de seus antepassados para assumir uma personalidade grandiosa.

Esse horror de comer com os criados não era natural a Julien, para chegar à fortuna ele teria feito coisas bem mais penosas. Essa repugnância vinha das Confissões de Rousseau. Era o único livro com o auxílio da qual sua imaginação concebia o mundo. A coletânea dos boletins do grande exército e o Memorial de Santa Helena completavam seu Alcorão. Ele enfrentaria morte por essas três obras. Jamais acreditou em nenhuma outra. (STENDHAL: 2002, 28)

Ela (Mathilde) amava realmente aquele La Mole, amante da rainha mais inteligente de seu século, e que morreu por ter querido dar a liberdade aos amigos, e que amigos! O príncipe herdeiro e Henrique IV. (Idem: 308)

Na mediação interna, por outro lado, a distância entre o indivíduo e o mediador é curta, acarretando a concorrência entre eles pelo objeto do desejo. Nessa situação, o mediador costuma ser tomado por rival e, conseqüentemente, obstáculo. O reconhecimento do prestígio do mediador e a admiração por ele despertada existem, mas não são admitidos — o que gera um sentimento de angústia no indivíduo desejante. É o que ocorre com a personagem Mathilde, cujo interesse por Julien só se fortalece depois que ele corteja a marechala de Fervaques. Apesar das motivações heróicas de caráter que resgata de seus antepassados, Mathilde não deixa de prezar por sua condição: linda e milionária. A concorrência pela atenção de Julien com a marechala, igualmente bela e rica, inspira em Mathilde o desejo de afirmação de sua superioridade sobre a outra. Em outras palavras, ela não deseja Julien, de fato, mas sim a superioridade que o interesse deste lhe atribuirá. O mesmo ocorre com o personagem Valenod em relação ao sr. de Renal, quando este contrata Julien como preceptor. Valenod não tinha qualquer interesse no jovem carpinteiro até a sua contratação pelo prefeito — seu rival —, o que quer dizer que o desejo do diretor do asilo aponta para o prestígio do prefeito, e não para o jovem professor.

Há que se ressaltar que a projeção muda de natureza conforme cada tipo de mediação. Ao idealizar e desejar aventuras românticas, Emma quer vencer o tédio, transcender a mediocridade da vida real, ao mesmo tempo em que Mathilde, quando aspira a um caráter superior ou quando suspeita ver Boniface de  La Mole na figura de Julien, deseja se sobrepor à vulgaridade de seus pares sociais. Pode-se perceber que a mediação externa, com seus moldes inacessíveis, está mais associada a uma elevação da moral ou a um desenvolvimento espiritual. Em contrapartida, a mediação interna, motivada normalmente pelo ciúme e pela inveja, está intimamente ligada aos papéis sociais que se quer exercer.  Julien está no meio, pois seu desejo está dividido entre a superioridade social inerente à vida eclesiástica e a elevação do caráter que ele julga existir na bravura e na distinção das forças armadas. 

Girard acrescenta que, embora identifique o desejo mimético já em sua época, Stendhal também acreditava no desejo subjetivamente motivado, como o da senhora de Rênal, que nunca lera romances. Contudo, é patente no autor de O Vermelho e o Negro, como em Flaubert, a investigação quanto às insatisfações do homem moderno, bem como sobre essa dinâmica do surgimento do desejo e dos modos por que se busca realizá-los. Esse processo evidencia uma cisão nas subjetividades, que será largamente abordada através dos grandes heróis do romance moderno – indivíduos que, conforme explica George Lukács na Teoria do romance, querem reintegrar-se a seus mundos, mas estão fadados ao fracasso.

Quando põem em cena o processo de mediação do desejo nos atos de projeção, Flaubert e Stendhal demonstram uma aguda compreensão do homem, e também reforçam o importante papel que romance assumiria enquanto instrumento de reflexão.

Bibliografia:

CAMPBEL, Colin. “A ética romântica” In: A ética romântica e o espírito do consumismo moderno.Trad. Mauro Gama, RJ: Rocco, 2001.

FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary.Trad. Enrico Corvisieri.SP: Nova Cultural, 2002.

GIRARD, René. “Le désir ‘triangulaire’”. In: Mensonge Romantique et Verité Romanesque. Paris: Bernard Grasset, 196.

LUKÁCS, George. Teoria do romance. São Paulo: Editora 34. Coleção Espírito Crítico, 2000.

MORIN, Edgar. Cultura de Massas no século XX: Neurose. Trad. Maura Ribeiro Sardinha. RJ: Forense Universitária, 1987.

STENDHAL, Henrie Marie Beyle. O vermelho e o Negro. Trad. Paulo Neves. Porto Alegre: LP&M, 2007.

WATT, Ian. “A experiência privada e o romance” In: A ascensão do romance. Trad. Hildegard Feist. SP: Companhia das Letras, 1990.

Um comentário:

Rohit Dhyani disse...

Good to read