segunda-feira, fevereiro 29, 2016

O Deserto dos Tártaros, um romance sobre espera e propósito


O tempo entretanto corria, sua batida silenciosa marcando cada vez mais precipitadamente a vida, não se pode parar um segundo sequer, nem mesmo para olhar para trás. "Pare, pare!" se desejaria gritar, mas vê-se que é inútil. Tudo se esvai, os homens, as estações, as nuvens; e não adianta agarrar-se às pedras, resistir no topo de algum escolho, os dedos cansados se abrem, os braços se afrouxam inertes, acaba-se sendo arrastado pelo rio, que parece lento, mas não para nunca — Pg. 202

Publicado em 1940, O Deserto dos Tártaros é considerado o ápice da criação literária do autor italiano Dino Buzzati. Autor que se utilizava de situações fantásticas e de elementos surreais para criar histórias de cunho existencialista, Buzzati atinge, com esse romance, a máxima expertise no manejo de seus artifícios.

É difícil sair incólume da leitura desse romance porque os temas que ele discute são muito familiares e, ao mesmo tempo, universais. Tratam-se das grandes perguntas que nos fazemos ao longo de toda a vida: Que estou fazendo da minha existência?  Qual o seu sentido? Ainda há tempo para que meus planos se realizem?

O livro narra a história de Giovanni Drogo, tenente recém saído da academia militar que é designado para servir no forte Bastianni — uma fortaleza de fronteira. Na véspera da partida para o forte, Drogo experimenta uma angústia inquietante, teme o afastamento da cidade e dos entes queridos, sente-se apreensivo. A viagem para o forte é cansativa, longa, e sua chegada parece reforçar suas reservas: o isolamento em meio a um vale pedregoso, sempre encoberto por uma densa névoa, assusta-o, e a longa e incompreensível permanência dos oficiais naquela paragem erma e desoladora não contribuem para uma boa impressão.



Embora a rígida rotina militar se revele alienante e vazia de sentido, ela fornece algum senso de propósito ao repetitivo cotidiano dos oficiais, além de prometer, através de sua pompa e solenidade, um futuro de grandeza e importância. Essa dúbia relação com o trabalho, que nunca se resolve, paralisa os oficiais, que temem pagar o preço pela precipitação e torcem para que um futuro glorioso se lhes apresente. Se o isolamento em relação à cidade e às demais pessoas planta-lhes um ressentimento na alma, a permanência dentre os muros do forte, por outro lado, parece reservar — de modo irônico, dada a função original do forte — uma segurança existencial: a segurança de ter recebido uma missão importante o suficiente para eximi-los do peso das escolhas de uma vida em sociedade.

Numa rotina repetitiva em meio a um nada imponente e imóvel, boa parte da vida dos oficiais consiste em constatar a passagem do tempo, que se arrasta, vagaroso, embora sempre pareça, também, inexoravelmente perdido. Nesse incessante contar de horas e dias, cada nuance, cada variação de rotina ganha um peso que mobiliza, e é na narração desses pequenos desvios que a habilidade narrativa de Buzzati se impõe. Nesse romance de enredo mínimo, onde pouquíssimas coisas acontecem, cada evento fora do protocolo causa uma enorme sensação de ansiedade. A expectativa e a apreensão dos personagens se transferem para a leitura através do suspense narrativo, e vão aumentando, de forma gradativa, até o final do romance.

Exímio criador de atmosfera, Buzzati mantém a tensão durante todo o livro através de imagens sombrias, fantasmagóricas, que espelham o estado de espírito dos personagens.

A escuridão alcançou-o ainda a caminho. O vale havia estreitado e o forte desaparecera atrás das montanhas sobrestantes. Não havia luzes, nem mesmo pios de pássaros noturnos, apenas, de quando em quando, chegava o som de águas distantes.
Experimentou chamar, mas os ecos rechaçavam sua voz com um timbre inimigo. Amarrou o cavalo num toco de árvore na beira da estrada, onde poderia encontrar capim. Sentou ali, de costas para a escarpa, esperou que o sono viesse e enquanto isso ficou pensando no caminho que faltava, na gente que encontraria no forte, na vida futura, sem reconhecer qualquer motivo de contentamento. O cavalo às vezes batia os cascos no chão de modo antipático e esquisito. — Pg. 13



 A criação de imagens soturnas associada à perquirição existencial dão um tom poético ao texto.

Angustina estava pálido, agora não alisava mais o bigodinho, mas fitava diante de si a penumbra. Já pairava na sala o sentimento da noite, quando os medos saem das decrépitas paredes e a infelicidade torna-se suave, quando a alma bate, orgulhosa, as asas sobre a humanidade adormecida. Os olhos vítreos dos coronéis, nos grandes retratos, exprimiam presságios heroicos. E lá fora a chuva, sempre. — Pg. 64

Nesse sentido, a própria geografia montanhosa, a neblina e as muralhas do forte simbolizam o encerramento do indivíduo numa dinâmica de imobilidade e incerteza.

Há algo de Ivan Ilitch* na tomada de consciência de Giovanni Drogo, em seu olhar estupefato frente a sua inutilidade no universo. Assim como acontece com Ivan, Drogo não se intimida ante a contagem final dos ponteiros. Se a finitude é iminente, ele quer ter o poder de escolha quanto ao modo de percorrer esse caminho.

O romance é narrado numa linguagem enxuta, precisa, mas também elegante, onde nada excede. Essa precisão também comanda a seleção dos fatos narrados, o manejo dos elementos textuais e, principalmente, a abordagem da temática existencial — desenvolvida com lucidez capaz de conferir universalidade ao texto, e com uma sensibilidade que o humaniza.

Justamente naquela época Drogo deu-se conta de que os homens, ainda que possam se querer bem, permanecem sempre distantes; que se alguém sofre, a dor é totalmente sua, ninguém mais pode tomar para si uma mínima parte dela; que se alguém sofre, os outros não vão sofrer por isso, ainda que o amor seja grande, e é isso que causa a solidão da vida. — Pg. 203

Em O Deserto dos Tártaros, temos um autor absolutamente maduro em seu ofício e uma obra irretocável e fundamental.



* A Morte de Ivan Ilitch, de León Tolstói.

Pinturas de Dino Buzzati.



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