sábado, novembro 17, 2018

Tramas de resistência



Está aí algo que ainda tenho de você em mim: a habilidade de tomar as linhas soltas, as partes inexplicadas que sempre existem, dando a elas um encaixe, um lugar possível e modesto no conjunto da trama. (p. 133)

Vencedor da edição de 2018 do Prêmio Sesc de Literatura, na categoria Romance, e publicado pela editora Record, "Entre as Mãos" é uma estreia ambiciosa da escritora petropolitana Juliana Leite.  Composto através de uma complexa trama de recursos narrativos - discurso direto, discurso indireto livre, fluxo de consciência, saltos temporais - o romance acompanha diferentes momentos da vida da tecelã Magdalena, que tem de reaprender a lidar com o próprio corpo e a executar as tarefas cotidianas após um grave acidente que lhe deixa sequelas e cicatrizes.

A metáfora texto/tecido não é nova, mas é explorada com muita eficiência por Juliana, que busca evidenciar o manejo das unidades, fio e sentido, num constante teste de resistência, harmonia e viabilidade da trama/história produzida. O livro é dividido em três partes  - Trama, Avesso e Linhas Soltas - que ressignificam uma à outra - a próxima sempre revelando o processo da anterior, afrouxando a trama para nos revelar os fios, as unidades e seus caminhos. Aquilo que não cabe mais, que não funciona, pode ser desfeito, descosido para ser recosturado em novas possibilidades. Essa metáfora também orienta, de certo modo, o processo das relações de Magdalena que, após receber alta do hospital, passa a ser cuidada por três tias que acompanharam de perto sua criação. Compartilhando as dificuldades materiais e financeiras de Magdalena, essas tias têm de fazer alguns sacrifícios para dar conta da sobrinha, e o romance nos apresenta esse cuidado como um labor contínuo, empenhado, que precisa também de seus arranjos e recomeços.

Esforço, trabalho, pobreza, violência e loucura são as linhas mestras do enredo de Magdalena, que se esforça em sobreviver através do remendo das faltas, da costura dos cortes, do estofo dos silêncios. Alienada de parte de sua história familiar e vítima de abusos e abandonos, é com a lógica da costura, sua arte, que ela busca resistir ao absurdo e sobreviver. Ela não tem escolha a não ser rememorar passado e versões dele a fim de lhes dar, ela mesma, algum sentido; e também não tem saída a não ser encarar os medos do trauma - atravessar a avenida ameaçadora, encarar o ônibus lotado com o corpo frágil, retomar o trabalho com uma mão diferente e destreinada, assumir as cordas da própria existência. E é com um olhar atento e generoso que Juliana desfia esse processo.

Você planejava as entradas dos parágrafos, a numeração dos capítulos, cuidando para que as cortinas e as cenas das cortinas, os corpos e as cenas dos corpos os lábios e os lábios em movimento para que tudo funcionasse. Você achou aquilo parecido com fazer tapetes. Tramar e escrever, coisas que se fazem com as mãos. (P. 149).

À imagem da costura, Juliana associa a ideia da versatilidade manual, pontuando a história com momentos em que mãos aparecem assumindo atividades variadas: agressão, carinho, cuidado, mímica, costura, escrita, apoio. É na polissemia dos papeis humanos que esse painel parece jogar luz.

A urdidura das diferentes vozes, estilos e tempos que compõem e organizam o romance é precisa: os personagens são convincentes, não se confundem - ainda que alguns deles sejam tramados numa combinação de memória e invenção; a legibilidade é fluida, sustentada por uma tensão, leve e constante, que conduz bem as transições entre os três grandes momentos do livro. A essa sofisticação formal se soma um tom de intimidade e familiaridade, obtida pelo conjunto de vocabulário, expressões e reveses que constituem o universo das pessoas mais simples.

Num romance que investiga a versatilidade do ser humano através dos paralelos com a versatilidade das mãos, é inevitável a ideia do manejo, e Juliana mostra que manipula com segurança as palavras. Sua abordagem dos dilemas humanos é sensível, possui alguma delicadeza. Mas o pulso é  firme.

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